A fase de grupos da Eurocopa de 2024 está chegando ao fim. Nos últimos dias, quatro das seis chaves foram definidas, culminando na eliminação de Albânia, Croácia e Sérvia, seleções que trouxeram à tona um debate político e de forte peso histórico das disputas nos Bálcãs, região localizada no sudeste do continente.
O componente geopolítico caminhou apimentou a participação das equipes na Euro. Naturalmente, o encontro entre albaneses e croatas, pela segunda rodada do grupo B, causou ebulição na tensão. O jogo em Hamburgo terminou empatado em 2 a 2.
Na ocasião, as torcidas se uniram em cânticos contra a Sérvia, uma rival política de albaneses e croatas. O “Mate o sérvio” entoado na arquibancada gerou revolta na Federação Sérvia, que ameaçou deixar a Eurocopa caso a Uefa não aplicasse sanções.
A entidade passou a investigar albaneses e croatas, e punições chegaram a acontecer. O atleta Mirlind Daku, que pegou um megafone e puxou mensagens contra sérvios e macedônios após o empate contra a Croácia, foi suspenso por dois jogos e a Federação da Albânia ainda foi multada em 47.250 euros (mais de 270 000 reais).
Eliminada em uma chave com Inglaterra, Dinamarca e Eslovênia, a Sérvia empatou dois jogos e perdeu um. A campanha decepcionante para uma forte geração também foi marcada por manifestações extracampo contra o Kosovo, país que se declarou independente em 2008 após conflitos sangrentos contra sérvios no fim do século XX. Na mesma linha de coibir “mensagens provocativas” nos estádios, a Uefa apresentou punições financeiras à Federação Sérvia.
Os acontecimentos que invadiram o âmbito esportivo só refletem o calor político da região dos Bálcãs, uma área do sudeste europeu que é palco de intensas disputas territoriais e culturais. Em busca de explicações sobre a origem dos duelos, PLACAR entrevistou Marcelo Leite, mestre e doutor em história social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
As origens e o contexto
Questionado sobre o porquê da Eurocopa ter sido, mais uma vez, um palco de manifestações políticas, o especialista contextualizou o esporte como um elemento que vai além das quatro linhas. Buscar um ponto inicial para os conflitos exige longo mergulho, explica Marcelo Leite.
“O futebol é um espaço de manifestação esportiva, sociabilidade, mas também de tensão política. Quando o assunto é campeonatos entre seleções nacionais, as tensões podem se aflorar. Esse é o caso que envolve as seleções da Sérvia, Albânia e Croácia. Entender os conflitos protagonizados pelos cantos antissérvios, por parte das torcidas de Albânia e Croácia é complexo e requeria um regresso de séculos. No entanto, pode-se eleger a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) como um grande fator detonador de rivalidades políticas que, recentemente, em razão da Eurocopa, tem invadidos os campos”, analisou.
Marcelo aponta que a Península Balcânica é uma região composta por Albânia, Grécia, parte da Turquia na Europa, Romênia, Bulgária, além dos países que compuseram a Iugoslávia (1918-1992): Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro, Macedônia, Sérvia e, desde fevereiro de 2008, Kosovo. O último é um país de reconhecimento parcial, e teve a independência com guerras que tensionaram ainda mais a relação entre sérvios e albaneses.
Além disso, vale reforçar que esse “pedaço” do que hoje se entende por continente europeu tem disputas ainda mais antigas. “Se retomarmos outros séculos, essa região já foi palco de conflitos na Grécia Antiga, integrou o Império Romano, compôs o Império Bizantino, assim como também o Império Otomano”, disse Leite.
A Primeira Guerra e seus impactos
“Sarajevo, capital da Bósnia, foi o local onde membros de grupos nacionalistas sérvios assassinaram o herdeiro do Império Austro-húngaro, em 1914, o estopim da Primeira Guerra Mundial, em discordância da anexação da Bósnia pelo império austríaco, em 1908, sendo este um território de reivindicação sérvia”, iniciou Marcelo ao explicar o quanto o primeiro grande momento bélico mundial impacta na região.
E nesse viés, ele relaciona os aspectos da construção da Albânia com todas as rivalidades locais: “Quando um país se torna independente, ele traz consigo todas os conflitos anteriores a essa decisão. Por exemplo, a Albânia declarou sua independência do Império Otomano em 1912. Ou seja, sua luta por independência esteve marcada pelos conflitos internacionais da Primeira Guerra e dissolução de impérios como o Russo, Alemão e Otomano.”
Com o passar dos anos, a região não se apaziguou. Muito pelo contrário, a situação foi marcada pelo início e pelo fim da Iugoslávia, com influência até da União Soviética, um dos estados que encabeçaram grandes acontecimentos do século XX mundo afora.
O peso da Iugoslávia
Ao fim da Primeira Guerra, na região foi formado um reino multiétnico: o dos Servos, Croatas e Eslovenos, que passaria a ser chamada de Iugoslávia, em 1929. Esse local, consequentemente, passou a criar uma das maiores rivalidades do continente, como contou Marcelo Leite
“De modo geral, era uma administração central, composta por repúblicas eslavas. Sua formação reuniu seis repúblicas (Eslovênia, Croácia, Bósnia-Herzegóvina, Sérvia, Montenegro e Macedônia) e duas regiões autônomas (Kosovo e Voivodina). A capital instituída foi Belgrado, hoje, atual capital da Sérvia. Assim, criou-se, nas disputadas internas da Iugoslávia, oposição entre servos e croatas pelo controle das repúblicas”, falou o historiador.
“Em 1945, com toda sua pluralidade cultural, religiosa e étnica, a Iugoslávia adotou o regime socialista, sendo influenciada pelo modelo soviético russo até 1948. Após isso, seguiu em uma independência em relação à URSS, aliando-se a outros países do socialismo. Como característica, adotou um modo mais aberto ao Ocidente, além da menor frequência de manifestações de cunho nacionalista, muito pela convergência de povos distintos”, prossegue.
Guerra da Bósnia e carnificinas
Entretanto, com a Queda do Muro de Berlim e a dissolução ds União Soviética, em 1991, o cenário mudou de maneira radical. O historiador seguiu explicando as relações: “Nesse período, a rivalidades étnicas se manifestaram em torno de projetos de independências de grupos que formavam a Iugoslávia, sendo a Croácia uma delas. Esses processos não foram pacíficos, já que a Sérvia não queria perder o controle da região.”
Depois de uma guerra civil, a Independência da Croácia foi assinada com intermédio da ONU. E a partir desse ponto, as tensões não chegaram ao fim, tendo em vista as lutas independentes na Eslovênia, na Macedônia do Norte e também na Bósnia.
Essa última, segundo Marcelo, deu início a um dos grandes momentos de massacre na Europa, que seguem tensionando as relações na região. “Nesse contexto, deflagrou-se a Guerra da Bósnia (1992-1995), marcada por uma excessiva violência e massacres contra os bósnios, por croatas e sérvios. Com a mediação da União Europeia, Estados Unidos e Rússia, os três lados do conflito assinaram um acordo, e a Bósnia passou a se constituir como independente. A carnificina e as graves violações aos direitos humanos nesses conflitos culminaram em denúncia no Tribunal de Haia, com prisão perpétua de Ratko Mladic, militar responsável pelo exército sérvio entre 1992 e 1995, e condenação de 40 anos de Radovan Karadzic, líder sérvio nos territórios da Bósnia.”
“A rivalidade de Sérvia e Croácia está conectada ao controle da antiga Iugoslávia durante décadas. E todas elas remontam às centenas de milhares de mortos e desaparecidos em guerras civis pelas independências na década de 90, após a dissolução iugoslava”, concluiu Marcelo Leite.
O caso mais emblemático destas rivalidades ocorreu na Copa de 2018, quando os jogadores suíços Granit Xhaka, nascido na Suíça, mas de origem kosovar, e Xherdan Shaqiri, nascido em Kosovo, antiga província albanesa majoritariamente sérvia, foram punidos por suas comemorações pró-Kosovo durante a vitória da Suíça sobre a Sérvia.
Os dois jogadores, que marcaram os gols da vitória, imitaram a águia da bandeira albanesa, um gesto considerado na Sérvia como um símbolo da “Grande Albânia”. Muitas pessoas em Kosovo, que tem maioria étnica albanesa, se identificam com essa bandeira. O gesto também é uma referência a uma doutrina Kosovo, antiga província da Sérvia, que declarou em 2008 sua independência. Belgrado ainda se nega a reconhecê-la.
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