Há 25 anos, prodígio gaúcho fez Ronaldinho virar Ronaldo

“Olha o que ele fez, olha o que ele fez, olha o que fez….” Quem viveu esse momento dificilmente esquece a forma como Galvão Bueno narrou o golaço que apresentou Ronaldinho Gaúcho a todos os brasileiros, chapelando defensores na goleada por 7 a 0 sobre a Venezuela, na primeira fase da Copa América de 1999. De prodígio do Grêmio, o jovem dentuço de apenas 19 anos passou a ser um dos destaques da seleção que conquistaria não só aquele título no Paraguai, mas o pentacampeonato mundial, três anos depois, no Japão.

Ronaldinho Gaúcho só participou daquela Copa América por uma ironia do destino. Edílson, do Corinthians, foi cortado da lista como punição às embaixadinhas contra o Palmeiras que geraram confusão generalizada na final do Paulistão de 1999. O técnico Vanderlei Luxemburgo, então, optou pelo destaque do Grêmio, que enlouquecera o veterano Dunga, do Inter, na final do Gaúcho.

Edilson, do Corinthians, dando uma rasteira em Paulo Nunes, do Palmeiras -
Edilson, do Corinthians, dando uma rasteira em Paulo Nunes, do Palmeiras – PLACAR

A entrada do craque de Porto Alegre no time provocou também uma mudança de nomenclatura: à época, quem era chamado de Ronaldinho era o camisa 9, Ronaldo Fenômeno, grande estrela do futebol mundial – que curiosamente levava o nome no diminutivo por ser o caçula no tetra em 1994, com Ronaldão na zaga. O centroavante chegou a jogar a Olimpíada de Atlanta-1996 com a camisa 18 e o nome “Ronaldinho” grafado.

Galvão Bueno seguiu chamando ambos de “Rrrrrrrrronaldinho” em suas narrações, mas para a maioria dos torcedores no Brasil e no exterior, a alcunha colou mais no mais jovem. O blog #TBT PLACAR, que todas as quintas-feiras recupera um tesouro de nossos arquivos, recupera abaixo uma reportagem de Alfredo Ogawa sobre a passagem de bastão dos Ronaldinhos, publicada na edição de agosto de 1999.

Ronaldinho Gaúcho, do Brasil, e Rojas, da Venezuela, durante jogo pela Copa América (Jader da Rocha/PLACAR)

O duro país dos Ronaldinhos

O Brasil detona seus “velhos” ídolos da mesma forma que transforma garotos em deuses da bola num piscar de olhos

Por Alfredo Ogawa

No meio de tantos craques consagrados, ele era o menos notado por jornalistas e torcedores. Microfones e câmeras não chegavam a dar atenção ao menino que, em seu clube, era considerado um prodígio. Afinal, ali estava só mais um nome novo na constelação de estrelas da Seleção Brasileira. Tudo mudou num único jogo. O garoto fez um belo gol e virou ídolo instantâneo no país inteiro. Ronaldinho entrava para o mundo da fama.

Errou. Não é de Ronaldinho Gaúcho que se fala, nem do golaço, com chapéu incluído, que ele marcou contra a Venezuela, na última Copa América. Essa história aconteceu em 4 de maio de 1994, num amistoso contra a Islândia, em Florianópolis. O Brasil ganhou de 3 x 0 e Ronaldinho, até então um atacante mais conhecido nas Minas Gerais do seu Cruzeiro, fez um gol e deu o passe para os outros dois. Aos 17 anos, garantiu em cima da hora uma vaga para o grupo que disputou e venceu a Copa dos Estados Unidos. Fez mais. Naquela partida no estádio da Ressacada, ele dava o primeiro passo para ser o maior fenômeno do futebol mundial, com direito aos bônus (títulos, mulheres bonitas e dinheiro) e, cada vez mais nos últimos tempos, aos ônus também (críticas, denúncias de cafetinas oportunistas, etc). Um caminho que, cinco anos depois, um outro Ronaldo, tão careca, dentuço e, provavelmente, talentoso quanto o primeiro, começa a trilhar.

Pior do que FHC
Duas frases de Wanderley Luxemburgo, técnico da Seleção Brasileira, sintetizam as vantagens e desvantagens de tamanha semelhança:

“O Brasil é país capaz de criar ídolos no futebol da noite para o dia.”
“Os mesmos que endeusam Ronaldinho hoje serão os críticos ferinos de amanhã.”

Ronaldo de Assis Moreira, nascido em Porto Alegre há 19 anos, vive a primeira fase. Outro chapéu (em cima do volante Dunga, do Inter) e outro gol (contra o mesmo Inter, na decisão do Gaúcho) já haviam rendido ao jogador do Grêmio um aumento de 12 000 para 19 000 reais no salário. A atuação na Copa América, depois confirmada com brilho na Copa das Confederações no México, empurrou o valor do seu passe para 27 milhões de dólares. Todas as suas histórias são comoventes ” como a mãe que chorou ao saber que o filho dedicara a ela o primeiro gol na Seleção Brasileira. A pergunta é: a lua-de-mel é para sempre?

Ronaldo Luiz Nazário de Lima, 23 anos a completar no mês que vem, sabe que não e sofre agora para sair da maldição contida na segunda frase de Luxemburgo. Hoje, poucos dão importância ao título de melhor jogador do mundo conquistado por Ronaldinho em 1996 e 1997. Fala-se muito mais da trágica Final da Copa da França, quando uma convulsão fez do herói um bandido ” sem meios termos. Desde então, num fenômeno inverso ao de Ronaldinho Gaúcho, nada do ele faz tem valor.

“A qualquer erro, ele é mais castigado do que o Fernando Henrique Cardoso”, afirma Reinaldo Pitta, um dos procuradores do atacante, citando mais um nome sob um aparente inferno astral. “As pessoas no Brasil têm memória curta e esqueceram tudo que eu já fiz pela Seleção”, reclama Ronaldo. Lembra de Brasil 4 x Gana 2 nas Olimpíadas de 1996, Brasil 6 x Austrália 0 na Final da primeira Copa das Confederações em 1997, Brasil 4 x Chile 1, na Copa da França e Brasil 1 x Holanda 1, nas Semifinais da mesma Copa? Certo, essas grandes atuações não apagam a decepção na Final, mas, por uma questão de justiça, o inverso também deve ser verdadeiro.

Ronaldo comemorando gol, durante jogo da Copa América (Jader da Rocha/PLACAR)

O mesmo Brasil que adora destruir políticos e anos depois consagrá-los com votações expressivas não perdoou ainda Ronaldo Nazário. Algo bem diferente do que acontece, por exemplo, na Itália. Lá Ronaldo passou uma temporada infame, ficou meses no estaleiro e, quando esteve em campo, não conseguiu evitar a desastrosa campanha de sua equipe, a Inter de Milão. Culpado? Não, inocente. Torcida, dirigentes e jornalistas preferem lembrar da temporada 97/98 quando Ronaldo fez chover e quase deu o título ao time milanês. Basta ele entrar em campo, marcar um gol, executar um drible para voltar a ser rei. Prova foi a Copa América, quando os italianos encararam o fuso horário do Paraguai e acordaram às 5 da manhã. Tudo apenas para assistir Ronaldo.

Na verdade, os diferentes comportamentos se explicam. O preço de ser o número 1 no Brasil é a eterna comparação com Pelé. Na Itália, a exigência é outra. Os maiores de todos os tempos são Gigi Riva, quem sabe Baresi, talvez um Paolo Rossi. Além disso, a torcida brasileira é especialmente intolerante com ídolos milionários quando eles não estão fazendo bonito. “Os ricos aqui provocam alguma inveja, mas muita admiração”, observa o jornalista italiano Enzo Paladini. “Os operários da Fiat não reclamam dos salários da Juventus (a montadora e o clube pertencem ao mesmo dono), isso é coisa dos anos 70, quando o país estava em crise. Agora os ricos são modelos para imitar, não pessoas para odiar”.

As diferenças culturais, porém, não eximem Ronaldo dos erros cometidos. O jogador pode ter sido vítima no caso da cafetina brasileira Lara que tinha o telefone do Fenômeno em sua agenda. Afinal, o tipo de sexo que Ronaldo pratica ou a qualidade das suas companhias são assuntos que dizem mais respeito ao próprio se isso não estiver influindo em sua performance em campo. Já o caso da Ferrari comprada no Brasil é diferente. Para conseguir um desconto de 100 000 reais no preço final do bólido (500 000 reais), Ronaldo aceitou posar de garoto propaganda, convocou a imprensa e disse que “andar de Ferrari no Brasil tem mais graça do que na Itália”. O torcedor de salário mínimo não achou a menor graça na frase. A péssima repercussão do caso levou Ronaldo a repensar a sua imagem. Após a compra da Ferrari, contratou Rodrigo Paiva, assessor de imprensa do Flamengo e de Romário.

O plano do novo assessor é aproximar o ídolo da mídia. Segundo Rodrigo Paiva, quando um craque está longe dos jornalistas sai publicado aquilo que parece, não o verdadeiro. Romário desembarcou no Flamengo em 1995 campeão do mundo e tentou repetir o esquema europeu de uma só entrevista semanal. Como o time não ganhou nem par ou ímpar naquele ano, Romário isolou-se. No ano seguinte, o Baixinho ficou parceiro da imprensa. Coincidência ou não, o Flamengo foi campeão e Romário aclamado como Rei do Rio. O mesmo acontece com Ronaldo. “Ele comprou a Ferrari, mas quem sabe que Ronaldo doou 80 000 dólares para as vítimas do Kosovo?”, questiona Paiva. Para que “boas notícias” passem a circular mais, o craque visitou hospitais e distribuiu dinheiro a associações do bem.

Moedor de craques
Ronaldinho, o Gaúcho, só está esperando a sua vez de entrar no picadeiro. Não basta ser craque. Quanto mais o garoto fizer em campo, mais perfeito ele terá que ser fora dele. Aos poucos, o gremista vai percebendo como funciona a máquina de moer ídolos. Na Copa das Confederações, Ronaldinho jogou muito na goleada de 4 x 0 sobre a Alemanha. No jogo seguinte, contra os Estados Unidos foi discreto como o restante do time, só que fez o belo gol da vitória. Foi só acabar a partida para o garoto ouvir as primeiras críticas. Não “pegou” bem a comemoração do gol com tiros imaginários de escopeta. Afinal, seria um estímulo à violência. A explicação de Ronaldinho nem foi ouvida. “Pô, eu tinha assistido antes com o Beto um filme chato de 3 horas e meia que só tinha tiro e brinquei dizendo que daria uns tirinhos se marcasse um gol na partida”, resumiu com a simplicidade de um menino de 19 anos.

A sorte de Ronaldinho é que o filme de sua vida já foi exibido em casa e não teve um final feliz. O irmão Assis, hoje com 29 anos, surgiu em 1987 no Grêmio como um diamante em estado bruto. Bastaria lapidá-lo e pronto. O Torino, da Itália, ainda tentou “seqüestrá-lo”, mas o Grêmio abriu o cofre, o presenteou com uma casa com piscina, salário e carinho. Assis correspondeu dando ao clube gaúcho a Copa do Brasil em 1989. Mas aí começaram os problemas. A estrutura psicológica ruiu no mesmo ano com a morte do pai afogado na piscina de casa.

“Tive que assumir a família e a própria formação do Ronaldo”, lembra Assis. Depois, surgiu uma contusão grave no joelho, cirurgia e 8 meses longe da bola. O tropeço seguinte foi a opção errada pelo primeiro pacote de dinheiro que apareceu na frente. Ao invés de esperar uma oportunidade na Seleção principal, Assis aceitou jogar na Suíça. Foi ídolo, mas e daí? A Suíça pouco representa no mundo da bola e a carreira de Assis definhou até chegar ao futebol japonês, onde está até hoje.

Só que o emprego principal de Assis não é entortar japoneses. Mesmo do outro lado do planeta, é ele quem gerencia a carreira de Ronaldinho. “A gente não deve queimar etapas. A idéia é deixar ele no Grêmio até o final do contrato, que vai até 2001, para só depois ir para a Europa”, planeja.

A cautela da família Assis e do próprio Grêmio, que vem recusando propostas milionárias, tem se revelado acertada até agora. O empresário Reinaldo Pitta, dono dos destinos de Ronaldo Nazário, tentou há 2 anos comprar o passe da promessa gremista. “Oferecemos 6 milhões de dólares do PSV da Holanda e o Grêmio não topou”, conta Pitta. “E fez muito bem”. Com a experiência de quem ficou milionário em função de seu faro para achar craques, Pitta só faz uma ressalva: “Ronaldinho Gaúcho é um grande jogador, mas ainda tem que provar o que vale”.

Qual é o Ronaldinho?

Quando Ronaldinho (o primeiro) surgiu, a imprensa era só elogios. Agora, a história se repete. Você consegue saber de qual dentuço em início de carreira as manchetes abaixo se referem?

manchmanch

Respostas: As manchetes 1, 3 e 4 dizem respeito ao Ronaldo “italiano”. Os títulos 2 e 5  são do Ronaldinho gaúcho.

“Depois da Seleção, melhorei. Sou um feio simpático que ficou bonitinho”
Ronaldinho Gaúcho, já sabendo como funciona a metamorfose dos ídolos

Ronaldinho Gaucho comemorando o gol contra a Venezuela, durante a Copa América (Jader da Rocha/PLACAR)

Gênios precoces

Pelé
Com 15 anos, era titular do Santos. Aos 16, estava na Seleção. Mal completou 17, já era campeão do mundo. Ano a ano, uma glória atrás da outra, num longo reinado.

Rivelino
Em 1965, corintianos de verdade chegavam mais cedo ao estádio só para assistir aos aspirantes e admirar os dribles, lançamentos e chutes daquele garoto de 19 anos.

Bebeto
No começo, era mais um entre tantos “novos Zicos” que apareciam na Gávea. Enquanto via os outros se perderem pelo caminho, fez história no Flamengo, Vasco, La Coruña e Seleção.

Zico
Tinha 18 anos e já era ídolo do Flamengo, mas os críticos, sempre apressados, diziam que ele era franzino, que só jogava no Maracanã. Acabou como maior artilheiro da história rubro-negra e o segundo da Seleção.

Não vingaram

Assis
O irmão mais velho de Ronaldinho Gaúcho sabe o que é ser endeusado prematuramente. Aos 19 anos, o meia já era bicampeão gaúcho, mas de repente se meteu na Suíça e sumiu. Tentou o Fluminense, o Vasco e foi parar no Japão.

Gilmar Popoca
Foi campeão mundial de juniores em 1983 e teve fama efêmera com seus dribles e ótima visão de jogo. O meia só não tinha visão de futuro. Pegou fama de lento e lenta foi sua decadência.

Adriano
Eleito o melhor jogador do Mundial de Juniores de 1993, o meia do Guarani batia faltas e lançava como Neto e era gordinho como o ídolo corinthiano. Sofreu anos na reserva do São Paulo até voltar a brilhar, neste ano, no Náutico.

Bismarck
Aos 19 anos, ele foi para a Copa de 1990 só para “pegar experiência” e explodir no Mundial seguinte. Os japoneses chegaram antes e levaram o meia para o exílio, onde está até hoje.

Da fama à lama
Os principais erros cometidos por quem deixa o sucesso subir à cabeça

Ostentar riqueza.
Ninguém é proibido de gastar dinheiro, mas, como Ronaldinho e a sua Ferrari provaram, o torcedor não perdoa a mistura carrões e luxos excessivos com má fase.

Cair na noite e se meter na vida de bebedeiras e mulheres fáceis.
Ou você é um Romário, que responde em campo às críticas sobre sua vida mundana, ou você vai ser massacrado pela torcida e imprensa.

Isolar-se.
O cara logo se cansa do assédio da imprensa, da torcida, dos chatos e prefere não falar com mais ninguém. Vira “antipático”, “arrogante”, “prepotente”.

Não agüentar a pressão.
A cada dia, um leão para ser morto. Como isso é impossível, o jovem e inexperiente jogador sente o peso das críticas.

Reclamar de substituições.
Ele se convenceu de que é titular absoluto e reclama ao deixar o gramado. Coitado, pensa que a torcida estará sempre ao seu lado.

Largar os treinos.
Um dia chega atrasado, no outro se “cansa” mais cedo e, em pouco tempo, está fora de forma.

Escolher o clube errado numa transferência.
Genial num grande clube brasileiro, o craque precoce acha que será rei em qualquer gramado ” mesmo que seja num time modesto da Espanha. Como não agüenta levar uma equipe inteira nas costas, logo passa a ser chamado de “fracasso”.

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