O futebol argentino chorou no último fim de semana a morte de um de seus grandes ícones, César Luis Menotti, ex-jogador e lendário técnico, campeão do mundo na Copa de 1978. Ele tinha 85 anos e sofria de anemia, mas não teve a causa da morte divulgada. El Flaco (O Magro), como era conhecido, é considerado um dos grandes pensadores do futebol — Pep Guardiola o tratou como um “gênio” ao lamentar sua morte.
“Sinto uma grande tristeza porque perdemos alguém com quem eu compartilhei não menos do que 30 horas de conversas maravilhosas nas quatro vezes que visitei a Argentina. Para mim era um gênio por sua ideia. Foi o maior sedutor do futebol argentino… Escutá-lo era uma aula, César era tudo. Criatividade, educação, inteligência. Fazia de sua palavra poesia e foi sempre fiel às suas convicções. O estilo é inegociável, dizia sempre”, contou Guardiola, o técnico do Manchester City, ao jornal Olé.
Menotti foi defensor de um estilo de jogo mais vistoso e ofensivo, de troca de passes, o que gerou rivalidade com o técnico Carlos Bilardo, campeão mundial em 1986, mais adepto do contra-ataque e de um jogo mais físico e “resultadista”. O debate entre o Menottismo e o Bilardismo se estendia a questões políticas, já que Menotti era um homem mais ligado à esquerda e extremamente contestador.
Na edição de março de 1982, pouco antes de estourar a Guerra das Malvinas, e um ano antes do fim da ditadura argentina, PLACAR traçou um perfil do “técnico da resistência”. O repórter Divino Fonseca foi a Mar del Plata conversar com o técnico, que expôs sua posição política, mas se dizia focado em levar à equipe ao bicampeonato na Copa da Espanha (derrotada por Brasil e Itália, acabaria eliminada na segunda fase).
O blog #TBT PLACAR, que todas as quintas-feiras recupera um tesouro de nossos arquivos, abre uma exceção na agenda para homenagear César Luis Menotti com o texto de 1982 na íntegra:
O TÉCNICO DA RESISTÊNCIA
Nem ingênuo e nem esquerdista, o treinador da seleção argentina não hesita em condenar as injustiças. E explica suas ideias políticas
Divino Fonseca, enviado especial
Alguns militares de seu país se irritam com a franqueza deste homem destemido. Mas ele sempre diz o que pensa
Quando o general Augusto Pinochet derrubou o presidente chileno Salvador Allende, um magrão de longa cabeleira loura foi visto entre os milhares de argentinos que saíram pelas ruas de Buenos Aires em protesto contra o golpe no vizinho pais. Era Cesar Luis Menotti. Então com 34 anos e há apenas três na profissão de técnico, ele já desfrutava de cartaz na Argentina por ter levado, naquele mesmo 1973, o mediano
Huracán a conquistar um titulo nacional depois de 45 anos de jejum.
— Futebol e politica, para mim, nunca foram inconciliáveis — justifica Menotti, encenando surpresa pela celeuma causada por sua recente investida contra o governo militar argentino. Com sua voz grave, acrescenta: “Se me perguntam sobre politica, apenas dou minha opinião, como qualquer pessoa. E, quando posso fazer alguma coisa pela normalização democrática em meu pais, faço.
— Não não é bem assim. El Flaco Menotti tornou-se mais duro nas criticas à medida que seu poder cresceu. Nove anos atrás, um antes de assumir a seleção, foi uma inocente passeata; em 1978, o mutismo diante das autoridades militares durante as festanças pela conquista da Copa; depois, a dedicatória “Àqueles que acreditam que amanha o sol vai brilhar”, em seu livro “Futebol: jogo, esporte e profissão”; mais tarde, a inclusão de sua assinatura num manifesto que indagava do governo sobre presos políticos desaparecidos; finalmente, dias atrás, sua explosiva entrevista a revista La Semana, em que criticou a censura a artistas e intelectuais, lamentou o baixo nível de vida dos trabalhadores, profetizou que “cedo ou tarde o povo exigirá respostas dos governantes” e, de passagem, classificou de nazistas os que o chamam de comunista.
Essa continua gradação nas criticas não passou despercebida pelos militares. “Aonde pretende chegar esse Menotti?”, bradou em seu gabinete o poderoso vice-almirante Carlos Alberto Lacoste, ministro do bem-estar social, presidente do Ente Autárquico Del Mundial (EAM) em 1978 e, talvez, o maior inimigo de Menotti dentro do governo.
Porém, nada abala esse grandalhão que trabalha e brinca na concentração da Villa Marista, em Mar del Plata, com a consciência de que leva
a situação sob controle. Começaa que ele tem o apoio da maioria dos argentinos, pois comanda uma das poucas coisas que funcionam a contento no pais. Dos selecionados também: o capitão Passarella, Bertoni e Ardiles prometeram cair fora da seleção caso o técnico fosse despedido por suas declarações.
— Não é só por isso — , revela Passarella. — Nós, jogadores, achamos que ele está a quilômetros de distancia de qualquer outro técnico argentino. Para completar, Menotti já recebeu sinais de que os militares preferem engolir sapos a provocar uma crise maior as vésperas da Copa. Então, nada mais natural do que usufruir dos prazeres desse poder. Em brincadeira ou a sério, ele não perde oportunidade de reafirmar sua independência. Exemplo: um repórter de tevê vai a Villa Marista e lhe pergunta:
— Você seria capaz de renunciar? Menotti solta uma risada, tira uma tragada de um dos 60 cigarros Parisiennes que fuma por dia — um destronca-peito que só ele e outros poucos argentinos suportam — olha entediado para a câmera e ironiza:
— Que pergunta! Então estoura uma bombinha na esquina e o técnico da seleção tem que renunciar?
A simbólica visita do presidente Leopoldo Galtieri, reage também com simbolismo. Numa sexta-feira, o general convoca a imprensa, aparece de surpresa na Villa Marista e lhe taca um abraço, como a dizer que estão todos no mesmo barco. No sábado, o que faz Menotti? Vai ao Teatro Opera, em Buenos Aires, onde se apresenta a cantora Mercedes Sosa, que ainda está proibida no radio e na tevê do país. “La, é homenageado com a mística “Los Hermanos”, de Atahualpa Yupaniqui, que fala de gente “con un horizonte abierto que siempre esta más allá, y essa fuerza para buscarlo con tesón y voluntad”. Entre urras, aplausos e abraços, forma-se um ambiente de resistência heroica.
Cenas como essa provocariam num brasileiro a sensação de coisa passada, Mas são compreensíveis na Argentina, onde o uso de mascaras de carnaval só é permitido com licença da polícia, artistas são proibidos sem mais nem menos e ensaia-se a participação na guerra de El Salvador. Em meio a tais sombras, não cabe em Menotti a imagem de Don Quixote ou de esquerdista festivo, e sim a do que simplesmente ele> um homem com dignidade e coragem.
Imagens, por sinal, nao lhe faltaram em meio à celeuma toda. Ele seria amigo do general Roberto Viola, o presidente deposto por Galtieri, e só por isso carregou nas críticas, como sussurraram aos ouvidos da imprensa estrangeira alguns funcionários do governo; um vadio, que ganha 15 mil dólares para não fazer quase nada, como vociferou Palito Ortega, o cantor da família argentina; um privilegiado, que tem dois carros importados, como acusou a agência oficial Telam.
Esticando seu 1,90 m numa cadeira, ele reage aos falatórios com uma ponta de enfado. Para as ofensas de Palito, apenas um sorriso. Quanto a acusação oficial de ser um profissional de sucesso, esclarece que ganhou um BMW vermelho da Puma, por conta da propaganda que faz para aquela firma de material esportivo, e comprou com seu dinheiro um Gol amarelo da Volkswagen brasileira, para sua muIher Graciela andar com os filhos Cesar Mario, de 17 anos, e Alejandro Antonio, de 11. General Viola? Não, não era seu amigo. Nem uma suposta amizade com Galtieri, que lhe seria benéfica, ele confirma: “Ele jantou com a seleção quando fomos jogar contra o Brasil em Rosário, na Copa de 1978. Apenas isso”.
Pede, porém, que não o considerem um valentão que vive a pedir briga, “embora tenha perdido o medo quando garoto”. Julga-se um homem comum, apenas um pouco mais exigente. Aprecia o cinema do sueco Ingmar Bergman, “que faz um grande filme com um rosto e uma câmera”, mas, em compensação, em matéria de música, prefere a popular, da Argentina e do Brasil. José Ingenieros, autor do célebre “O Homem’ Medíocre”, foi seu escritor preferido na adolescência. Mais tarde, leu tudo sobre politica, “de Nietzsche a Marx e Engels”, mas
recorda com carinho as passagens do simples e ingênuo “Meu Pé de Laranja Lima”, best-seller de 15 anos atrás do brasileiro José Mauro de Vasconcelos. E justifica: ” No fundo, eu ainda sou um menino que se emociona com facilidade.”
Quando menino, batendo bola em Rosário, seu sonho não era apenas jogar na seleção argentina. Queria treiná-la também. Jogou nela, em 1961/62. Andou pelo Racing, Boca Juniors, pelo Santos, Juventus e, em 1970, pegou uma boca como auxiliar técnico do Central Córdoba. Passou pelo Newell’s, para explodir em 1973 no Huracan, onde formou um ataque lembrado com saudade até hoje: Houseman, Brindisi, Avallay, Babington e Larrosa. Em outubro de 1974, finalmente, era escolhido como técnico permanente da seleção. Sem nenhuma pressão, orgulha-se, e sim, por méritos próprios.
— ” Quem me convidou? O presidente da AFA, doutor David… Bricutto, Brocutto?
Bracutto, alguém ao lado o auxilia.
Independente, Menotti sabe que é essa qualidade, além da competência, que mantém sua liderança entre os jogadores e a torcida, e pretende conservá-la até o fim — embora reconheça que é comum os governos buscarem dividendos políticos nos Êxitos esportivos. “Quem utiliza o futebol para isso que explique. Eu só me preocupo em formar uma seleção ganhadora, que jogue de acordo com as características e a sensibilidade do seu povo. E acho que vamos ganhar. Na Espanha, espero contar com o apoio de 150 mil argentinos, sem me perguntar o que pensam em matéria de politica. Inclusive porque entre eles há muitos que saíram do seu país contra a vontade.”
Se, de fato, há uma guerra por imagem política em torno da seleção argentina, os militares perderam a dianteira para Cesar Luis Menotti.
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